Escolheremos ser ratos que voam ou beija-flores?

Escolheremos ser ratos que voam ou beija-flores?

Por Marcella Arnulf

Ontem, assistindo ao encontro da Operativa com o MINC, refleti sobre as opiniões opostas  das  pessoas  que  estavam  presentes.  De  um  lado,  algumas  pessoas questionavam o fato de que grande parte do orçamento era destinado ao audiovisual e tentavam realocar esses recursos para outras áreas artísticas, como dança, teatro e música. Essas pessoas argumentavam que o audiovisual estava se tornando corporativo. Do outro lado, pessoas ligadas ao setor do audiovisual defendiam que é importante garantir que a verba chegue às mãos de quem já atuava na área antes da pandemia, pois muitos “novos profissionais” surgiram durante o período de isolamento social. Elas dizem que apenas estão buscando a atenção da lei, que pela primeira vez está dando importância para essa categoria até então elitizada. O que gerou esses conflitos acalorados? Eu, que frequentemente tenho dificuldades em me comunicar de forma clara e delicada, devido ao meu transtorno de atenção e impulsividade, adquiri uma obsessão de tentar entender os desvios da comunicação e encontrar qual foi o ponto óbvio que foi esquecido, e que desencadeou a incomodo. E foi assim que, ao enviar uma mensagem em privado em resposta a uma mensagem coletiva, recebi a resposta, “Mas você nem se apresentou”, ele estava certo, ele não me conhecia, eu nem me apresentei e já fui falando em meias palavras pontos que fazem parte de contextos muitos complexos, obviamente não seria uma conversa produtiva! Então, respondi: “Verdade, desculpe, como você pode me entender se nem nos conhecemos, faltou me apresentar”.

Imagine um cozinheiro que nunca dançou decidindo protagonizar um espetáculo de dança apenas porque tem uma verba destinada à dança e não para a culinária, e achando ruim que uma bailarina profissional questione ou defenda sua posição como profissional. As outras artes podem achar que todos podem fazer uma obra audiovisual, afinal, uma ideia na cabeça e uma câmera na mão. Mas o ponto é que a questão do embate não é tecnicista, não é um jogo de quem tem capacidade de fazer um filme ou não. E penso que essa confusão só pode estar acontecendo porque, assim como o colega do grupo do whatsapp não me conhecia, nossas artes irmãs ainda não conhecem o que muitos de nós vivenciamos como setor do audiovisual marginalizado. Sendo assim, fiquei pensando em como nos apresentar e em como poderia contribuir com esse debate, e me dei a licença de uma tentativa de esclarecimento geral, assim vou me apresentar, com os devidos privilégios e limitações de quem vos escreve, como o AUDIOVISUAL DE GUERRILHA. Eu e vocês, artes irmãs fomos criados de forma distante, eu sou visto como o primo rico que por toda a vida morou fora do país, e quando a avó morreu assassinada por quem deveria tê-la cuidado, voltou de longe, cheios de termos, exigências, pleiteando nosso lugar no testamento.

A direita e a esquerda

Provavelmente, não sou como você imagina. A imagem que você pode ter de mim é aquela que se vê no Instagram, distante e misteriosa. No entanto, é importante que você saiba que existem outras facetas e realidades além do intercâmbio internacional. Há a prima tímida do interior, o primo pobre da periferia, aqueles que não possuem equipamento e filmam com um celular, a classe média que estudou em boas faculdades,  mas  não  teve  oportunidades  e  acabou  fazendo  seu  próprio  filme vendendo brigadeiros ou vendendo um carro velho. E há muitas outras histórias como essas.  Agora, permita-me explicar por que nunca aparecemos nas festas de Natal em família. O audiovisual que você e a sociedade em geral conhecem é o audiovisual que quer se tornar  uma  indústria,  então  é  esnobe,  não  se  mistura.  Porém,   ele  ainda  não  é indústria, e há aqueles que estão próximos de alcançá-lo, bem como outros que estão se esforçando feito masoquistas para chegar lá, por isso de vez em quando eles vem de mansinho pedindo empréstimo para vovó, Esse audiovisual é mais luxuoso, mais caro,   tem o lucro como premissa, exige críticas positivas nos jornais, glamour nos tapetes vermelhos, egos inflados vestindo grifes e grandes estrelas. Sim, eles são vistos e lembrados. Por  outro  lado,  nossos  filmes  de  guerrilha  sempre  foram  produzidos  com  rifas, parcerias imploradas e sem orçamento. E por inúmeras vezes contamos com vocês, artes irmãs mais velhas nessa luta, com a colaboração dos atores de teatro, as trilhas sonoras dos amigos músicos e o esforço do cenógrafo e do figurinista que se arriscam a fazer um novo formato, são vocês que nos ajudam, não nosso irmão da capital. Mas infelizmente,  mesmo  depois  de  produzidos,  nossos  filmes  muitas  vezes  não  têm espaço  para  serem  exibidos,  ou  seja,  eles  nunca  são  vistos.  É  por  isso  que  nunca aparecemos nas festas, muitas vezes não nos sentimos dignos da família.

Não somos inimigos, apenas queremos ser reconhecidos.

Durante muitos anos, só havia um edital para curtas-metragens para o município de São Paulo e nenhum a nível   Estadual ou federal, e que vos escreve é dessa fase, . Embora  na  última  década  o  mercado  tenha  tido  o  apoio  da  esfera  federal,  esse suporte estava cada vez mais enfraquecido. Apesar dos pisos salariais para o audiovisual   serem   justos   e   minimamente   respeitados,   graças   às   conquistas trabalhistas  alcançadas,  inclusive  pela  publicidade,  que  é  também  uma  forma  de audiovisual, esse alto padrão é caro, somado aos altos valores de equipamentos para gravação, impossibilitou durante anos a criação de obras à margem do eixo Rio/SP.

O modelo do mercado audiovisual é elaborado para um set de filmagem profissional que tem um turno de 12 horas, as gravações de longas e séries duram de 40 dias a 3 meses e até recentemente apenas com 1 dia de descanso por semana. Isso significa que aqueles que lutam para entrar neste meio não podem ser cineastas e professores, técnicos de áudio e corretores, diretores e dentistas, produtoras e mães, se tornando um  meio  altamente  elitizado,  afinal,  o  que  você  faz  entre  as  produções?.  Não  é possível acumular projetos ou trabalhos, e até por isso um orçamento de um milhão de reais é considerado baixo para fazer um filme, afinal você precisa manter a estrutura de uma grande equipe por muito tempo corrido. No entanto, esse modelo de produção se aplica aos irmãos, o tal cinema de “mercado”, exercido na capital de São Paulo, mas que parece até então ser o único valorizado e reconhecido, visto que é um segmento de maior impacto econômico na cadeia cultural.

Já o audiovisual de guerrilha é esquecido e inferiorizado, muitas vezes, as produções precisam ser pensadas em diárias picadas para economizar no almoço da equipe e conciliar agendas. Fazemos vaquinhas o tempo todo para arcar com os custos de produção, inscrições em festivais (que são caríssimos) e para assistir nossos próprios filmes  na  tela.  Ok,  mas  assim  como  nossas  artes  irmãs,  apesar  das  dificuldades, resistimos e produzimos com o que temos, muitas vezes surgem obras apenas feitas com o celular. No entanto, é provável que essas obras só possam ser vistas no YouTube,  porque  elas  não  cabem  nos  critérios  para  as  telas  de  festivais,  porque praticamente não existem mais cinemas de rua, porque o cinema pobre e marginal quando aprovado para um grande festival, precisa carregar aquela imagem de um grande achado, um diamante bruto em meio a uma pedreira repleta de pedras sem valor.

O cinema periférico e do interior é outro. A realidade é que temos, precisamos acumular trabalhos, ter outras profissões, sempre tivemos que ter o famoso plano “b”, nunca conseguimos de fato ser profissionais que sobrevive minimamente da própria arte. O ProAC de São Paulo acabou de lançar seus editais e, tirando o de curtas, todos são de complementação. O cinema do interior luta há anos para que não se retirem as cotas do interior, uma luta contra o cinema hegemônico que quer comer todas as bordas e recheios. Falharam até agora, mas espertos e rasteiros que são, conseguiram uma brecha. Este ano, só teremos editais de complementação. A pergunta que fica é: quem  tem  verba  reservada  e  garantida  pela  federal,  coprodução  ou  patrocínios diretos para ter o que complementar?

Será que devemos mesmo continuar considerando que com R$500.000 não é possível fazer um filme? Será que não seria possível produzi-lo inteiramente com esse valor, pensando em um novo modelo de produção diferente das capitais? Me parece incongruente querer replicar um modelo que nunca nos incluiu. Precisamos repensar nossas formas de produção e explorar novas possibilidades. Talvez possamos criar um filme gradualmente, dentro de um grupo de pesquisa independente, outros formatos podem e devem surgir. E é aqui que volto minha suplicas para as artes irmãs, embora o financiamento ideal voltado para a cultura estar muito aquém do que acreditamos ser o ideal, nós, do audiovisual marginalizado e sobrevivente,  que desde sempre enxergamos o audiovisual como linguagem primária da nossa arte, que há anos fomos  escondidos,  pela  primeira  vislumbramos  a  possibilidades  de  quebrar  esse paradigma hegemônico e elitizado, por isso entenda, o fundo de toda a briga de ontem, não é com vocês, não é com quem quer começar a fazer filmes, nem nunca foi ou será sobre vocês, artes irmãs.  Sobretudo, queremos poder contar com nossos colegas artistas de outros segmentos, que há mais tempo lutam contra questões similares e sabem muito bem contra quem precisamos lutar.

E só para finalizar adiciono um ponto que considero o mais nefasto para nós, audiovisual de guerrilha e marginalizado. Estamos, ou estávamos até pouco tempo, sozinhos, porque o mercado nunca permitiu o desenvolvimento do coletivo. Você conhece algum grupo criativo de audiovisual de projetos contínuos? Companhias de cinema? O modelo hegemônico funcionou “tão bem” que não coube nem o vislumbre  do  sonhar  juntos  novos  modelos,  não  cabia  nada  além  do  óbvio estabelecido, isso até hoje! Até que a esperança surgiu em meio a uma tragédia que foi a pandemia, o audiovisual foi visto com outros olhos, e a Lei Paulo Gustavo surgiu como uma oportunidade única, que gerou uma crença otimista entre nós, incitou o encontro, nos fez defender nossa arte de forma quase que irracional, a ponto de brigarmos entre nós, da mesma família. Tudo isso sem dúvida não é corporativismo, é porque pela primeira vez sentimos que poderemos ser vistos.

Pedimos apoio e que valorizem os envolvidos historicamente nesse segmento, especialmente artistas e técnicos do interior e das periferias, e que de uma vez por todas, possa fica esclarecido que não é briga pelo orçamento, até porque esse irá acabar logo, mas é defesa legitima de uma semente que poderá impulsionar a união nunca vista do setor e incentivar diálogos para criação de novos modelos de produção, fazer surgir novas formas de começarmos a existir profissionalmente.

Sendo assim, e exposto tudo isso, retorno a pergunta inicial para quem chegou até aqui. O que faz com que segmentos e pessoas que tem tanto em  comum  e  poderiam  ser  parceiras,  amigas,  amores,  testemunhas  de luta, se enxerguem como concorrentes?

Será só dinheiro? Ou a falta dele?… NÃO, se for isso, acreditamos que falhamos, e falhamos forte. Porque o que temos hoje são migalhas jogadas aos  pombos,  para  nós,  ratos  que  voam.  Aceitaremos  então  que  somos pombos, a escória do mundo, ratos com asas? Ok, pode até ser, pelo menos temos asas que voam baixo, mas voam, nos permitindo imaginar, criar, voar e sonhar com a transformação. Só que sinceramente, não acho que sejamos  apenas  pombos  que  voam  baixo,  e  assim  como  você  me  via (espero que não mais) como primo rico, podemos assumir juntos que não queremos  ser  bicho  sujo,  parasita,  que  não  somos  iguais  brigando  por pedaços de pão velho jogado no chão, e ajudar uns aos outros a relembrar que somos tucanos, araras, beija-flores, bem-te-vi, pica-pau e que viemos de uma floresta vasta, ampla, diversa, que não importa quem mate a gente nasce de novo…

Seguimos sempre.

Marcella Arnulf é  Atriz, roteirista , multimeios

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